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TOUR PELO MUNDO

TOUR PELO MUNDO

 

 

Tour pelo mundo ALE

Marcelo Carneiro da Rocha

 


A Bélgica é o berço das cobiçadas cervejas do estilo Ale, país onde os padres produzem e consomem cerveja da melhor qualidade, em velhos, mas charmosos mosteiros.

Faz pouco mais de um mês que cheguei da Bélgica, um país que antes era associado por mim apenas a vagas lembranças de grandes fábricas de chocolates e belas canções de Jacques Brel. É lógico que aqui ou ali, eu já tinha ouvido superlativos comentários e também degustado algumas deliciosas cervejas belgas que o simpático beerman Xavier Depuydt, do Belgian Beer Paradise, do Rio de Janeiro, insistiu em desperdiçar na minha ressecada companhia.

Anteriormente, já havia conhecido também, embora vagamente, esse povo acolhedor, quando há alguns anos atrás estudei na França. Mas, nenhuma dessas vagas experiência agora pode ser comparada a uma visita à Bélgica sob meus olhos de cervejeiro. Esqueçam as Platinum Light americanas, as corpulentas Lagers alemãs e as falsas louras brasileiras. A vanguarda e a verdadeira tradição cervejeira mundial resolveram mesmo coabitar pacificamente neste país de duas línguas, e numerosas cervejas e cervejarias.

Acompanhado de Chantal de Smedt, guia expert em roteiros gastronômicos no país, além de amiga instantânea, apresentada informalmente via e-mail pelo meu caríssimo amigo Chico Vanneron - padre, belga e apreciador de boa cerveja -, tive o prazer de visitar e conversar com os proprietários e cervejeiros de três das mais charmosas cervejarias belgas neste meu tour cultural pelo berço das cervejas do tipo Ale. Para quem não sabe, classicamente, as cervejas são divididas em dois principais estilos: as Ales, tradicionais da Bélgica e da Inglaterra, e as Lagers, nativas da Alemanha.
 

 


A primeira cervejaria que visitei, em Wambeek, nos arredores de Bruxelas , foi a De Troch, uma pequena fábrica que mais parecia uma fazenda, mas que produzia com orgulho e savoir faire uma autêntica Gueuze, cerveja de fermentação espontânea surpreendente. Fabricar cerveja sem adicionar levedura foi a idéia mais estranha que poderia ter passado pelos meus neurônios naquele momento, mas, o cervejeiro tarimbado e paciente, como que lendo meus pensamentos me explicou com detalhes seus segredos de fabricação. "O fermento esta aí", disse ele, que com um gesto largo abarcou toda sala de brassagem e apontou para o teto, como se o mundo inteiro fosse feito de fungos.

Com efeito, a levedura de alta fermentação, ou sacharomyces cerevisium, parece não ser muito exigente em termos de acomodações, alimentação e companhia, pois ao menor sinal da temperatura adequada e de môsto na sala, trabalhava vigorosamente, acompanhada por tudo mais que estivesse flutuando no ar. Assim como sempre o fez, desde os tempos do Egito antigo.
 


 


Para aumentar ainda mais o meu espanto, o cervejeiro da casa narrava, que no ano passado a rigorosa Vigilância Sanitária belga os obrigou a pintar as paredes, e o resultado foi que a melindrosa levedura voadora recusou-se a trabalhar por duas semanas. Depois desta exótica e instrutiva visita fomos ao escritório, degustar a variada linha de cervejas da De Troch.

 

 

Comercializadas sob a marca Chapeau, essa cervejas são todas variações de uma mesma receita de trigo maturada, adicionada de suco natural concentrado e aromas de diferentes frutas. Normalmente, os apreciadores tradicionais torcem o nariz para este tipo de combinação - eu particularmente achei que a Kriek (cereja) e a Mirabelle (pequena ameixa européia) eram muito saborosas.

No dia seguinte, bem cedo, já estávamos na estrada. Minha energética guia e anfitriã, Chantal e eu, partimos rumo a uma outra cervejaria tradicional, só que muito maior e mais antiga. a Bios, de Paul Vansteemberg. No caminho ela me


 


explicava que também vinha de uma velha família de cervejeiros, que até meados dos anos 70/80 possuía uma das maiores cervejarias da Bélgica, a Ginder Ale. Esta cervejaria foi então comprada pela Interbrew (hoje Interbev), e posteriormente colocada fora do mercado, repetindo uma triste prática que até hoje persiste no mercado cervejeiro. Mas, voltando a Paul Vansteemberg, logo ao chegar a Bios não pude deixar de simpatizar com a figura aberta e bem humorada que é o Paul. Imediatamente ele nos levou a parte mais antiga da fábrica que como na maioria das pequenas e médias cervejarias belgas, permanece intocada, como um belo museu com seus domos oxidados de cobre e tinas abertas de fermentação.
 


 


Depois deste nostálgico tour, foi a vez de conhecermos a moderna sala de brassagem, toda computadorizada e em reluzente aço 304, além de ostentar equipamentos alemães da Steinecker, o equivalente à Mercedes das cervejarias. O animado Paul demonstrou então o funcionamento dos computadores e discorreu amuado sobre os fatidiosos controles do fisco belga e os problemas

 


de distribuição. Pareceu-me então que os problemas da nossa tão antiga profissão realmente só mudam de endereço, porque permanecem os mesmos no mundo todo. Após nos mostrar as caves de fermentação, chegamos finalmente à área de engarrafamento, e aí tive uma grande surpresa.


 

Nunca, nos meus sonhos mais delirantes, esperei encontrar uma variedade tão grande de cervejas diferentes em um único processo de engarrafamento. Paul explicava que para fazer face aos gigantes do mercado, fabricavam mais de 30 rótulos diferentes, entre os seus e os terceirizados, destacando a St. Augusteen, Golden Drag, Westmalle (brune) e Piraat.

Ao falar, exemplificou puxando uma garrafa da linha ao lado: "Estão vendo, esta é a Patrona, uma cerveja de estilo mexicano, feita aqui na Bélgica, para ser exportada à Rússia e Suécia. Todos nós temos de dar nossos pulos para sobreviver hoje em dia". Concordei admirado. A globalização tinha realmente atingido em cheio o mercado cervejeiro, aliás a nova Brahma consumida na Bélgica é na verdade feita na Holanda e a belga Stella Artois vendida no Brasil é feita em Jaguariúna, acreditam ou não?

 


Desagradam-me um pouco esses tristes simulacros, mas se forem bem feitos, menos mal, o que se há de fazer se o mundo prefere a aparência à legitimidade.

Terminamos a visita no charmoso bar da fábrica, onde Paul me fez degustar cinco ou seis das suas exóticas especialidades fazendo questão que eu ficasse com o copo alusivo a cada uma delas. Minha coleção agradeceu penhorada e, com certeza, todos eles estarão em exposição no futuro pub Cervejarium, que pretendo inaugurar em Ribeirão Preto até o final deste mês de setembro. De volta já à noite, jantamos na companhia de toda a família de Chantal, seu marido Franz, seus adoráveis filhos e sua mãe de 83 anos de maltada lucidez, que nos contou saudosas histórias do tempo em que dirigia a velha Ginder Ale. Rimos muito e comemos um patê de Cervo que me fez dormir satisfeito.
 


 

Na De Koninck fomos recebidos por um guia, que além de entender muito de cerveja possuía um discurso superafinado com o meu. Durante uma hora discorremos sobre a história da cerveja, nossas preferências, métodos de fabricação e etc. Para um amante de cerveja, como eu, era como estar no céu ... Discutir sobre cerveja na Bélgica é como falar de vinhos na França, ou comentar sobre uma partida de futebol no Brasil. As opiniões podem divergir, mas todos falam com paixão e conhecimento da mesma causa.
 

 


Depois de visitar a moderna e limpíssima fábrica da De Koninck voltamos ao bar da fábrica, onde um sorridente prático-cervejeiro nos trouxe uma amostra de levedura de alta fermentação para degustar. Para mim não era uma experiência nova. Essa pasta viva possui muitas vitaminas, principalmente as do complexo B, e em muitas cervejarias é vendida para indústrias farmacêuticas como um subproduto. O sabor, se não é espetacular, também está longe de ser desagradável, só não recomendo a experiência a intestinos delicados.
 


 

Quando já nos preparávamos para sair eis que surge Dominique, proprietário e administrador da cervejaria. Extremamente afável, ao saber que um de seus visitantes era brasileiro, convocou imediatamente Bernard, seu irmão e cervejeiro da fábrica, um apaixonado pelo Brasil que se sente feliz em escapar do clima chuvoso da Bélgica para passar suas férias nas nossas praias do Nordeste. E sabe que Bernard tem razão?

Degustando aqueles seus maravilhosos produtos, únicos e considerados sempre como objetos de desejo por mim, mesmo tendo visitado a tradicional cervejaria Palm, conversado por horas com os monges trapistas (aqueles que fazem voto de silêncio) e experimentado cervejas dos deuses, me deu uma saudade imensa de respirar o ar inconfundível de Ribeirão Preto, de rever os amigos e beber a cerveja feita "lá em casa", com características fiéis às tradicionais escolas do mundo e obedientes à Lei de Pureza, mas com um gostinho bem brasileiro de ser. Neste momento, achei que era hora de voltar. E a minha chegada foi comemorada com uma encorpada Weissbier Colorado, minha loura preferida entre todas do mundo.